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FIU, FIU NÃO É ELOGIO: assédio sexual contra mulher nos espaços públicos e suas implicações na saúde


Arte de Cecília Silveira


Ana saiu de casa às 9hs da manhã com uma regata rosa e uma bermuda jeans. Ao atravessar a rua sofreu o primeiro assédio sexual (buzinas de carros) constrangida baixou a cabeça e seguiu para estação. No metrô sentiu suas genitálias tocadas pelo desconhecido na sua frente, nervosa preferiu descer e continuar o caminho andando. Ao chegar à feira três homens gritavam repetidamente: linda, gostosa, oh lá em casa. Ela por sua vez desviou o olhar. Na volta pra casa mais uma vez foi abordada com comentários agressivos e ameaçadores. Cansada dos assédios sexuais diários Ana decidiu reagir aos insultos, e por conta disso recebeu um soco na lateral do rosto e um próximo à boca.


A proposta do presente artigo tem muito a ver com essa ficção. O assédio sexual além de ser crime contra a liberdade sexual pode acarretar na saúde da vítima implicações físicas e psíquicas. Depressão, transtorno de ansiedade, dores de cabeça, estresse, distúrbios do sono, crises compulsivas de choro, perda de memória, irritabilidade, tendência ao isolamento, perda de confiança e autoestima, náuseas, insônia, crise do pânico, suicídio, hematomas, arranhões e perfurações no corpo são algumas das implicações severas. (MONDE DU TRAVAIL, 2000).


A relevância do tema se insere no debate sobre a participação da mulher na esfera pública e o direito pelo seu próprio corpo. Em uma sociedade arraigada pelo machismo a mulher não tem o direito de não responder ao assédio sexual, de reagir aos insultos ou de circular livremente pelas ruas sem que seja ofendida. O agressor tem que ressaltar sua virilidade por meio da perseguição, agressão e humilhação da vítima, pois o homem segundo a ideologia dominante tem a função de perseguir o objeto de seu desejo da mesma forma que o caçador persegue o animal que deseja matar, para o poderoso macho o importante é seu próprio desejo. (SAFFIOTI, 1987).


Para tanto, este artigo esta dividido em dois tópicos. Primeiro que trata das formas do assedio sexual contra gênero feminino nos espaços públicos (sonoro, verbal e físico) e num segundo, que evidencia as implicações do assédio sexual na saúde da assediada.



1. ASSÉDIO SEXUAL CONTRA MULHER: RESTRIÇÃO DA LIBERDADE E MOBILIDADE FEMININA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS


Os assédios sexuais contra as mulheres se estruturam a partir de uma cultura patriarcal de dominação masculina que restringe o acesso da vitima ao direito fundamental de liberdade e mobilidade. Podem ocorrer em casa, na rua, na faculdade, no metrô, no ônibus ou mesmo dentro do consultório médico, com presença de testemunhas ou não. Variam desde linda, gostosa, ê peitão, delicia, oh lá em casa, até assovios, buzinas de carros, olhares invasivos, comentários agressivos e/ou ameaçadores, toques em partes intimas, agarramentos e masturbação pública.


A reciprocidade é um grande divisor de água para se estabelecer o que é paqueração e o que é o assedio sexual. Paqueração implica que a mulher está lá também olhando para o homem, que há uma reciprocidade entre ambos por meio de código culturais. Enquanto que assédio sexual de acordo com o artigo 40º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate a Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, 2014 (Convenção de Istambul):


É o comportamento indesejado de caráter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com intuito ou o efeito de violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando cria um ambiente de intimidade, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo. (CONVENÇÃO DO CONSELHO DA EUROPA PARA A PREVENÇÃO E O COMBATE A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E A VIOLÊNCIA DOMESTICA, 2014, p.).


O termo “assédio sexual” surge na segunda metade da década de 1970 com a jurista e cientista política Catharine MacKinnon, que propôs pela primeira vez em 1979, a criminalização do assedio sexual dentro de uma perspectiva jurídica. Seu livro “Assédio Sexual de Mulheres Trabalhadoras”, de 1978, se baseou em casos de assédios sexuais contra estudantes e funcionárias de Universidades americanas. MacKinnon argumentava que, conforme o código dos Direitos Civis de 1964, o assédio sexual precisaria ser caracterizado como uma forma de discriminação sexual que ocorria como expressão do status desigual de homens e mulheres. (DINNER, 2006).


Em Buenos Aires na Argentina foi aprovada lei para punir assédio em espaços públicos. Apresentada pelo deputado Mariano Ferreyra, a lei almeja prevenir e sancionar o assedio sexual verbal ou físico causados em ambientes públicos ou de acesso público. O objetivo é coibir o tratamento que incomode, maltrate, intimide e que afete em geral a dignidade, a liberdade, o livre trânsito e o direito a integridade física ou moral das pessoas, baseados em sua condição de gênero, identidade e/ou orientação sexual. A legislação prevê uma multa de 200 a mil pesos e de dois a dez dias de serviços comunitários para o assediador. E quando a conduta for baseada na desigualdade de gênero e foi feita de forma unilateral o fato será considerado agravante. (G1. GLOBO, 2016).


No Brasil o assédio sexual contra mulher nos espaços públicos não tem legislação especifica, contudo pode ser qualificado como crime ou contravenção penal de acordo com a conduta do assediador. No artigo 61 da Lei nº 3688/1941 é considerada uma contravenção penal a importunação ofensiva ao pudor (assédio verbal) quando alguém diz coisas desagradáveis e/ou invasivas (as famosas “cantadas” de rua: gostosa, delicia, ô lá em casa) ou faz ameaças.


Quando alguém pratica uma ação de cunho sexual (como por exemplo, exibe seus genitais) em local público, a fim de constranger ou ameaçar alguém é considerado ato obsceno de acordo com Art. 233 do Código Penal. Já tocar as partes íntimas de alguém sem consentimento pode ser enquadrado como estupro. Conforme artigo 213 do Código Penal constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.


No contexto do trabalho o código penal no artigo 216 caracteriza o assedio sexual por constrangimentos e ameaças com a finalidade de obter favores sexuais feitas por alguém normalmente de posição superior a vítima. A pena é de detenção e varia entre um a dois anos, caso o crime seja comprovado. Em 15 de maio de 2001 a Lei nº. 10.224, introduziu no código penal (Decreto-Lei n. 2.848, de 1940), o delito de assédio sexual no capítulo dos crimes contra a liberdade sexual. Aos que se enquadrarem aos requisitos exigidos pelo artigo 216-A, o assédio sexual poderá acarretar dois tipos de punição ao infrator: detenção de um a dois anos, além de indenização por danos morais. Vale ressaltar que a conduta típica do assédio sexual somente será punida se praticada após a data em que a lei entrou em vigor, caso tenha ocorrido anterior essa data não será penalmente punível, apenas consequências na esfera trabalhista, civil e administrativa. (TERRUEL; BERTANI, 2010).


Nos últimos anos a questão do assedio sexual contra mulher nos espaços públicos ganhou notoriedade principalmente nas redes sociais. O Think Olga que trata exclusivamente sobre os assédios nos ambientes públicos realizou em 2013 uma pesquisa online batizada de “Chega de fiu, fiu” com intuito de saber opinião das mulheres sobre o assédio sexual. Foram 7762 participantes e 99,6% afirmaram que já sofreram assédio sexual e 83% não achavam legal. Das cantadas que já receberam nas ruas, “linda” e “gostosa” abrigam 84%.


Quanto o local, 98% sofrem assedio sexual na rua, 77% na balada, 64% em transporte publico, 33% no trabalho e 80% em lugares públicos como praças e parques. 90% disseram que já trocaram de roupa antes de sair de casa com medo do assédio e 81% já deixaram de fazer alguma coisa ou ir a algum lugar pelo mesmo motivo. A questão é que nenhuma mulher deveria sentir medo de sair de casa, pegar ônibus, ir à faculdade ou ser obrigada a trocar de roupa para evitar o assedio sexual. Ir à padaria em uma manhã de sábado ou na feira no domingo não deveriam ser oportunidades do assediador atacar, mas o direito assegurado ao gênero feminino de ir e vir sem ser incomodada.



A liberdade de vestir um short ou uma camiseta para aliviar o calor não é garantida. Quando veste uma dessas peças e sofre o assédio sexual, a vítima é acusada de provocar os assediadores. Pois as mulheres ainda são socializadas para desenvolver comportamentos submissos, passivas e controladas enquanto que os homens são estimulados desenvolver condutas hostis e perigosas. (SAFFIOTI, 2004).


O assediador no imaginário da sociedade é um ser que não consegue controlar seus impulsos sexuais enquanto que a assediada é considerada como a culpada, seja por usar roupas provocantes, maquiagem exagerada ou mesmo por não se comportar “adequadamente” o que geralmente quer dizer “como uma respeitável mulher, mãe, ou moça de família”. Quando a mulher está em uma festa ou em um bar sem companhia masculina é vista como alvo fácil para os assédios sexuais. Um não ou desvio de olhar não é respeitado pelo assediador, que mesmo com todas investidas negadas continua com os puxões no braço, nos cabelos, tentativa de beijar a vitima, tocar nas genitálias e xingamentos.


Um pesquisa divulgada em marços de 2016 pela organização internacional de combate à pobreza ActionAid mostra que 86% das brasileiras ouvidas sofreram assédio em público em suas cidades. A pesquisa ouviu 503 mulheres com idade acima de 16 anos de todas as regiões do país, em uma amostra que acompanhou o perfil da população brasileira feminina pelo censo populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A Região Centro-Oeste é onde as mulheres mais sofreram assédio nas ruas, com 92%. Em seguida, vêm Norte (88%), Nordeste e Sudeste (86%) e Sul (85%). Para a pesquisa, foram considerados assédios: atos indesejados, ameaçadores e agressivos contra as mulheres, podendo configurar abuso verbal, físico, sexual ou emocional.



Em relação às formas de assédio sofrido, o assobio é o mais comum (77%), seguido por olhares insistentes (74%), comentários de cunho sexual (57%) e xingamentos (39%). Metade das entrevistadas no país disse que já foi seguida nas ruas, 44% tiveram seus corpos tocados, 37% disseram que homens se exibiram para elas e 8% foram estupradas em espaços públicos.


No levantamento, as mulheres também foram questionadas sobre em quais situações elas sentiram mais medo de serem assediadas. 70% responderam que ao andar pelas ruas, 69%, ao sair ou chegar em casa após escurecer e 68% no transporte público. O levantamento mostra que o assédio contra o gênero feminino em espaços públicos é um problema global, já que, na Tailândia, também 86% das mulheres entrevistadas, 79% na Índia, e 75% na Inglaterra já vivenciaram a mesma problemática.


As ruas nas duas pesquisas aparecem como o local e que as vitimas mais são assediadas com 98% e a situação em que mais elas têm medo de serem assediadas com 70%. O que significa que o assedio sexual fere o direito da mulher de ir e vir assegurado pela Constituição Federal (1988) “é livre a locomoção no território nacional”. Basta sair de casa, atravessar a rua pra que elas tenham seus corpos invadidos com palavras, olhares e toques indesejados.


O direito da mulher sobre seu próprio corpo ainda permanece um grande desafio a ser alcançado em todo mundo. Muitas das vítimas podam sua própria liberdade e seu direito de escolha, deixando de usar uma roupa que gosta atravessar uma praça, sair de casa ou pegar ônibus para evitar tal abordagem. O assédio sexual restringe a sexualidade feminina mesmo que os assovios, olhares e comentários não denotam ato sexual. Configuram como uma maneira do homem exercer o poder e virilidade moral sobre as mulheres, podendo ocasionar inúmeras implicações na saúde física e emocional da vítima. (SANTOS, 2015).



2. IMPLICAÇÕES DO ASSÉDIO SEXUAL NA SAÚDE DA VÍTIMA


O assédio sexual além de ser crime contra a liberdade sexual pode acarretar na saúde da vítima inúmeras implicações físicas e psíquicas. Entre as psíquicas estão: depressão, perda ou ganho de peso, dores de cabeça, estresse, distúrbios do sono, transtornos de ansiedade, crises compulsivas de choro, perda de memória, irritabilidade, tendência ao isolamento, perda de confiança e autoestima, náuseas, insônia, crise do pânico, e até, ao suicídio. Na saúde física pode ocasionar hematomas, arranhões, perfurações no corpo e até feminicidio. (MONDE DU TRAVAIL, 2000).


Por não corresponderem ou por reagirem às investidas dos assediadores algumas mulheres ainda sofrem a violência física. A professora de português Brunna Dias Ribeiro foi uma das vitimas agredida e roubada após não responder ao assedio sexual. Ela conta que quando voltava o agressor assediava repetidamente “morena gostosa! morena linda!” e como não correspondeu, os outros dois homens que estavam com ele riram da rejeição. Em seguida o agressor se aproximou e acertou soco na lateral do rosto dela, um próximo à boca e ainda roubou 70 reais que estava na sua bolsa. (EXTRA. GLOBO, 2016).


A cantora baiana Aiace Félix, de 27 anos, publicou uma foto com um relato em seu Facebook contando que foi agredida com três socos no rosto por um taxista no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. A vítima estava saindo da balada com sua irmã e uma amiga quando um taxista que estava parado na frente do local ficou incomodado pela cantora ter “pedido respeito” após ele ter assediado sua irmã. “O taxista se sentiu incomodado por eu tê-lo confrontado e me respondeu de forma bem agressiva reiterando o assédio”. O táxi deu ré tentando atropelar ela e as outras mulheres. Não satisfeito, o taxista saiu do carro, e deu três socos no rosto, atingindo olho direito, boca e o ombro/pescoço da Aiace Félix. (G1. GLOBO, 2016).


Michelle Ferreira Ventura de 30 anos, diarista que morava em Niterói, Região Metropolitana do Rio Janeiro veio a óbito depois de quatro meses de internação em decorrência de pauladas que levou na cabeça. Testemunhas relataram à polícia que Michelle foi tirar satisfação com o assassino por não gostar dos assédios diários que sofria. “Ele não teria gostado e a agrediu. Ele tinha a intenção de matar, só bateu no lado direito da cabeça”. A Delegacia especializada de atendimento à mulher de Niterói – (Deam) informou que o autor foi indiciado pela morte de Michelle e o inquérito policial encaminhado à Justiça com relatório final e representação pela decretação da prisão preventiva do mesmo. . (G1. GLOBO, 2016).


Em uma sociedade arraigada pelo machismo a mulher não tem o direito de não responder ao assedio sexual, de reagir aos insultos ou de circular livremente pelas ruas sem que seja ofendida. O agressor tem que ressaltar sua virilidade por meio da perseguição, agressão e humilhação da vítima, pois o homem segundo a ideologia dominante tem a função de perseguir o objeto de seu desejo da mesma forma que o caçador persegue o animal que deseja matar, para o poderoso macho o importante é seu próprio desejo. (SAFFIOTI, 1987).


Brunna, Michelle e Aiace Félix foram mais três vítimas a denunciar seus agressores e a buscar os serviços de saúde em decorrência da violência de gênero. Dados do Mapa da violência 2015 tirados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM) do Ministério da Saúde brasileiro mostram que só em 2014, 405 mulheres demandaram atendimento em uma unidade de saúde por sofrer alguma forma de violência. A maior taxa de atendimento está registrada entre os 12 e 17 anos de idade: 18,0 atendimentos por 10 mil adolescentes de ambos os sexos. (WAISELFISZ, 2015).


Os atendimentos femininos ultrapassam os masculinos em todas as idades até os 59 anos. A violência física é a mais frequente com 48,7% dos atendimentos, com maior incidência nas fases jovens e adultas da vida mulher quando chega a representar perto de 60% do total de atendimentos. Em segundo lugar a violência psicológica com 23,0% e em terceiro a violência sexual com 11,9% dos atendimentos, com maior incidência entre as crianças até 11 anos de idade (29,0% dos atendimentos) e as adolescentes (24,3%) (op.cit).


O assédio sexual contra a mulher persiste de forma velada e astuciosa no espaço público e nos locais de trabalho, com quase total impunidade para os assediadores. Segundo Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia-FRA estima que uma em cada duas mulheres tenha sofrido assédio sexual. (MÚRIAS; SALES; MORAIS, 2015). A mulher tem seu direito de ir e vir limitado pelos assediadores. Não basta assediar verbalmente, o “poderoso” macho tem que ressaltar sua virilidade por meio da agressão, humilhação e até feminicídio da vitima.










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