Quem eu mais amo também ama meu agressor - #minhahistoriadeviolencia
Créditos: "Family Dynamics" by Naomi Gerrard
Por volta dos 10 anos de idade eu fui abusada sexualmente por um primo que na época estava com seus 16 anos. Eu não consigo especificar quantas vezes isso aconteceu, ou por quanto tempo, mas foi o suficiente para me marcar para sempre.
Hoje eu tenho 28 anos. Essa história ainda me dói. E me dói, ao longo desses quase 20 anos, por razões diferentes, sendo o meu silêncio uma dessas razões e a conclusão recente a que cheguei de que esse silêncio foi forjado e mantido, ao longo de todos esses anos para protegê-lo.
Logo que esses abusos aconteceram eu lembro de não ter contado para ninguém. Eu me sentia muito envergonhada por tudo e além disso, na minha mente de criança, eu pensava em como expor esse assunto ia machucar a minha família. Era difícil para mim acreditar que meu primo, alguém a quem eu amava e com o qual brincava e ria junto, era capaz de fazer aquelas coisas comigo.
Apesar do medo que eu sentia de que aquilo acontecesse novamente, eu queria acreditar que ele não o faria mais. Acreditava que bastava eu evitar ficar a sós com ele que eu conseguiria impedir que os abusos acontecessem novamnte. Coloquei a responsabilidade em mim. Mas ele sempre dava um jeito.
Lembro, por exemplo, de estar no quarto dele, junto com a minha irmã e outras primas. Estávamos navegando na internet, então uma novidade na nossa família, e ele me puxou do grupo, sentou na cama dele, me sentou em seu colo e fez o que gostava de fazer comigo: colocar o dedo dentro da minha vagina. Como doía e eu me sentia extremamente envergonhada, amedrontada e desconfortável, eu fazia pequenos esforços de tentar me desvencilhar dele. Lembro dele falando nesse dia: "só mais um pouquinho" e de como essa frase trazia uma conclusão perversa pra mim: eu precisava me submeter aquilo, só mais um pouquinho, para agradá-lo. Também lembro de olhar para minhas primas no quarto, tão absortas na tela do computador que não percebiam o que acontecia comigo, o que fazia eu me sentir desamparada, e de como eu me sentia horrível por não conseguir impedir aquilo. Rolava uma festa da família nesse dia, todos os tios e tias na casa. Ninguém ficou sabendo do que houve.
Outra vez, estávamos brincando de patins na casa em que ele morava e lembro de ele começar a me perseguir. Eu lembro do medo e do desespero que senti, já antecipando o que ia acontecer e tentar patinar mais rápido que ele. Ele mesmo assim me alcançou e, muito discretamente, me carregou e colocou o dedo dentro de mim. Eu me sentia tao humilhada....
Mas tudo isso acontecia de forma velada. Eu e ele, de alguma forma, mantendo as aparências para que ninguém percebesse o que estava acontecendo: ele para se safar e eu por um misto de vergonha e medo.
Um dia, no entanto, conversando com uma prima minha dois anos mais nova (na época, portanto, ela estava com 8 anos de idade) e com a filha da empregada da minha tia com quem esse meu primo morava, que devia ter uns 6 anos de idade, eu consegui falar. Contei para elas, chorando, o que ele fazia comigo e, para nossa supresa, tanto a minha prima quanto a filha da empregada disseram que ele tinha feito isso com elas também. Elas também estavam guardando segredo quanto às suas dores, assim como eu. Era algo tao difícil pra mim admitir que aquilo tinha acontecido comigo que eu as fiz prometer não contar pra ninguém. Eu só queria desabafar. Mas, ainda bem que a minha prima de 8 anos não cumpriu com a promessa e, com o intuito de me proteger, decidiu contar para a mãe dela, que por sua vez contou para a minha mãe.
Lembro do dia em que o assunto veio à tona. Estávamos em casa e o telefone tocou. Minha mãe atendeu e seu rosto imediatamente ficou sério, os olhos grandes como se guardassem lágrimas de raiva que queriam rolar. Eu soube imediatamente o que ela estava ouvindo do outro lado.
Ela me chamou para o meu quarto, para conversarmos a sós. Eu me tremia inteira e me sentia muito nervosa. Ela então me disse o que a minha tia havia contado para ela e me perguntou se era verdade. Senti o sangue do meu corpo sumir. Abaixei minha cabeça, com muita vergonha, e disse que sim, era verdade. Ela então pediu que eu levantasse a minha cabeça e olhasse para ela, pois eu não havia feito nada de errado. Nem posso enfatizar aqui o quão importante foi ter ouvido isso dela.
Minha mãe saiu do quarto, ligou para o meu primo e falou para ele nunca mais encostar a mão em mim. Ele tentou negar, dizer que eu estava inventando estórias, mas minha mãe foi firme e disse: minha filha não está mentindo! Eu sou eternamente grata a ela por ter acreditado em mim e me defendido (sei que muitas não têm a mesma sorte) e ele, de fato, nunca mais encostou a mão em mim. Mas infelizmente, esse nao é o final da história.
Pois bem, até esse ponto haviam sido quebrados dois silêncios: o primeiro por mim, ao contar para minhas amigas o que eu havia passado e o segundo pela minha prima, ao contar para nossas māes. Porém, um terceiro silêncio se formou. Isso porque, ao me acolher e me prometer que ele não mais colocaria as mãos em mim, a minha mãe me fez um pedido: "Filha, não vamos contar para o seu pai tá bom? Você sabe como ele é esquentado. Só Deus sabe o que ele seria capaz de fazer com seu primo caso descobrisse". Eu concordei.
Pelos vários anos que se seguiram, eu continuava guardando em mim esse segredo e os inevitáveis encontros com ele sempre eram muito constrangedores. Ele continuava frequentando as festas em família, agindo como se nada tivesse acontecido. Continuava sendo o primo engraçado, falando e se movendo com liberdade e sem qualquer traço de desconforto em seus atos, enquanto eu me recolhia e me sentia completamente desconfortável estando próxima dele. Me incomodava muito ter que fingir que estava tudo bem, que o que aconteceu era coisa do passado, coisas de menino inconsequente, mas claro que, pelo bem da família, eu tentava me convencer de tudo isso. Eu QUERIA, mais do que tudo, deixar isso para trás.
Lembro do sentimento de injustiça e hipocrisia que me invadiu quando, na fase dos vinte e poucos anos, esse mesmo primo foi internado em uma clínica de reabilitação em virtude do vício em cocaína. Me incomodava a movimentação da família inteira em seu favor, para vê-lo melhorar. As orações, as visitas à fazenda de reabilitação, a carta de apoio que a minha mãe me pediu para escrever a ele e eu me forcei a escrever dizendo que torcia pela sua recuperação. Eu me sentia sozinha. Quem iria ficar do meu lado, sendo que ele, mesmo com todas as atitudes erradas de vício, abuso sexual das primas, furtos dentro de casa, dentre outros episódios, ainda conseguia manter o amor da minha mãe e do restante da família? Eu não conseguia entender.
Os anos foram passando e esse meu primo foi do inferno ao céu, ao menos aparentemente. Depois da reabilitação ele passou a ser um homem de fé, renovado, que ia à faculdade, trabalhava, prestativo, não mais se drogava e que se fazia sempre disposto a ajudar qualquer um da família com um sorriso no rosto. Ele se formou em odontologia, abriu um consultório, casou, teve uma filha...
Mas apesar de tudo isso, meu coração nunca mais confiou nele e eu me culpava por isso. Achava que eu estava sendo rancorosa e que estava errada por não conseguir acreditar em sua melhoria. Depois de um tempo, sem ter qualquer prova de que ele ainda causava mal a outras pessoas, a desconfiança que ainda era reprimida dentro de mim se transformou em esperança. Uma esperança de que ele DE FATO houvesse mudado, de que ele não apresentaria perigo para a própria filha ou para qualquer outra mulher/menina.
No entanto, em 2015, no auge da hashtag #meuprimeiroassedio, eu decidi dar mais um passo em relação à quebra do meu silêncio e publiquei em meu Facebook o meu relato.
Apenas uma pessoa veio me questionar a quem eu me referia no relato (já que assim como neste texto, a identidade dele foi preservada). Eu contei para essa minha prima quem havia sido meu agressor e ela então me contou que, alguns meses antes dessa minha postagem, esse mesmo primo, enquanto andava de carro com a irmã dela, já adulta, achou por bem pegar a mão dela e colocar a força em cima do seu pênis. Minha prima me contou como a irmã dela ficou muito nervosa e abalada com isso e pediu pra que, mais uma vez, fosse mantido segredo a respeito do caso. A mesma prima também me contou que nossa tia, a que criou esse primo como um filho, acordou uma noite com ele em pé, ao lado da cama, tocando na vagina dela. Pouquíssimas pessoas da família estavam sabendo disso.
Saber dessas histórias fez eu me questionar: por que será que todas nós mantemos segredos quanto aos abusos sofridos? A quem estamos tentando proteger? Será que a gente não percebe que ao calarmos sobre o assunto a gente está roubando a chance da nossa família de solucionar de vez esse problema e, mais claramente, estamos impedindo esse nosso primo de lidar com as consequências dos atos dele e, assim, incentivando-o a continuar? Será que a gente não percebe que protegendo-o estamos expondo ao perigo outras mulheres? Ou será que percebemos tudo isso, mas é apenas difícil e doloroso demais vê-lo pagar o preço pelos seus erros?
Será que se todas essas violências tivessem sido geradas por homens fora do nosso círculo familiar nós teríamos agido da mesma forma? Digo isso porque é difícil demais humanizar os agressores que vemos na TV assim como admitir as falhas daqueles que amamos. O tarado, o estuprador, o pedófilo e o criminoso é o outro. Quando se trata da nossa família chovem justificativas: foi uma fase; foi por causa das drogas; ele tem traumas antigos, afinal não foi criado pelos pais e também foi violentado sexualmente na infância; ele é um menino bom e vai melhorar; ele não faz mais isso; você está exagerando; não foi bem assim; você interpretou mal o toque dele, etc...
Eu ainda tenho medo de expor a verdade e ser responsabilizada por "acabar com a vida dele". Ainda tenho medo de como a minha família ira reagir ao saber de tudo: será que iriam me apoiar? Será que iriam me julgar e virar as costas? Será que iriam dizer que eu estaria sendo egoísta, ingrata, vingativa? Ou será que, na verdade, nada mudaria? Infelizmente essa é a dualidade que existe dentro de mim e é o que me impede de quebrar, de uma vez por todas, o meu silêncio.
Conciliar, em meu coração, que alguém a quem eu amo e que também é amado pelas mesmas pessoas que me amam, é alguém que foi capaz de me machucar e nunca pedir perdão e que é capaz de continuar machucando outras mulheres até hoje é difícil demais. Assim como é insuportável ter consciência de que o meu silêncio, tão difícil de ser quebrado, abre precedentes para que outras mulheres vivam a mesma violência nas mãos dele.
* Relato enviado via e-mail como parte da campanha #minhahistoriadeviolencia lançada pelo Instituto Mana em fevereiro/18. A identidade da mulher que sofreu a violência foi preservada em respeito a escolha dela.
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