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Não é porque eu e minha filha estamos vivas que "deu tudo certo" - #minhahistoriadeviolenc

 

Eu sofri violência obstétrica no dia em que a minha filha nasceu, em um hospital particular de Manaus. Quem me conhece e perguntou como tudo aconteceu ouviu um breve relato de como tudo "deu certo". Eu tentei parecer satisfeita e foi o suficiente pra ninguém questionar mais. Ninguém sabe como eu me senti porque eu escolhi guardar tudo só pra mim. Mas depois de dez meses, eu resolvi compartilhar. Não tenho porque ter vergonha de tudo que passou, eu não estava errada. Moro em Manaus, sou casada e tenho uma filha, Paula, nascida no dia 12/08/12. Nossa gestação foi tranquila, sem transtornos, eu e meu marido curtimos muito cada fase dela. Eu tenho um plano de saúde, fiz minhas últimas consultas do pré natal pelo convênio, mas como ainda estava na carência, já estava certo que o meu parto seria feito num hospital público.

Durante a gestação eu passei a maior parte do tempo lendo sobre o desenvolvimento do bebê na barriga, enxoval, primeiros cuidados com o bebê, conversava bastante com outras mães, mas não me informei sobre o parto... Minha mãe teve dois partos normais hospitalares e desde sempre eu soube que também queria um parto normal, por saber que era o melhor pra mãe e pro bebê. Não me preparei pra isso porque pensava que por ser algo natural, bastava ir ao hospital na hora certa e o meu corpo e a natureza fariam o resto. Eu não tinha medo da dor, mas tinha muito medo de ser maltratada na maternidade, já tinha ouvido muitos relatos tristes e tinha medo de sofrer nas mãos de uma equipe ruim, mas nem passava pela minha cabeça procurar uma equipe humanizada. A única certeza que eu tinha é que eu queria o meu marido ao meu lado o tempo inteiro. A ideia de ter uma cirurgia estava completamente fora de cogitação, a médica que acompanhava o meu pré natal me incentivava a ter um parto natural e me garantia que não havia nenhuma indicação de cesárea, eu e a Paulinha estávamos saudáveis. Até que um dia (com 37 semanas e seis dias) eu comecei a sentir uma dor de cabeça muito forte, diferente, que me impedia até de raciocinar direito. Eu estava num almoço na casa do meu pai quando comecei a sentir minha visão estranha, como se estivesse com um cisco no olho esquerdo. Fui ao banheiro, olhei no espelho e vi que não tinha nada, mas aquela sensação continuava, minha visão estava diferente. Lembrei de um dos artigos que havia lido que falava que isso podia ser sinal de pré eclâmpsia, falei pro meu marido que precisava ir ao médico e resolvemos ir ao hospital do convênio. Quis ir até lá por ser mais próximo, ficava a poucas quadras da casa do meu pai. Fui lá pensando em passar na emergência, aferir a pressão, talvez tomar um remédio e voltar pra casa, mas não foi assim... Passei com um clínico, minha pressão estava 14/9 e fui encaminhada pro centro de obstetrícia. A plantonista nem olhou pra mim e já foi falando pro meu marido: "O senhor tem que sair agora, não era nem pra ter vindo até aqui. O hospital não permite homens nessa sala pra preservar a privacidade das mulheres". DETESTEI a médica desde o primeiro momento, eu detesto ficar sozinha, principalmente em hospitais. Eu era a única gestante naquela sala, mas não protestei, ele se despediu de mim e saiu. Antes de ser colocada em observação a médica pegou a minha ficha e começou a reclamar do meu plano de saúde, pegou o telefone e ligou pra alguém de outro setor: "Dá uma olhada nesses dados e vê se esse é um daqueles planos cheios de carência. Se for, já sei que vou ter dor de cabeça com essa daqui".

Algum tempo depois veio uma mulher e disse que tinha ordens de fazer a minha transferência: "Ela não pode ficar. O plano tá na carência e ninguém pode fazer nada por ela. O marido tá atrás de dinheiro agora e acho que não vai conseguir. Vamos preparar pra transferir."

A médica disse que não autorizava a transferência: "Se ela sair daqui vai acabar entrando em convulsão na ambulância e eu não quero ninguém me cobrando por isso. Não autorizo, deixa ela aí, eu entrego o plantão, mas não faço a transferência, o próximo que pegar decide o que vai ser feito com ela." A mulher ainda tentou convencê-la, não lembro de tudo que foi dito, mas lembro de quando a médica falou: "Isso não é problema meu, a culpa é do pessoal da recepção que deixou ela entrar nesse estado".

Comecei a sentir medo. Achei desnecessário discutirem aquilo na minha frente. Aquela conversa só me deixou nervosa, angustiada e continuou por algum tempo, funcionários iam e vinham, ela fazia ligações e discutia por causa do plano, dizendo que não podia fazer nem uma ultrassom porque não sabia se o plano permitia. A médica fazia comentários desagradáveis pra mim, falando do tamanho da minha barriga que era muito pequena: "isso não é barriga de 37 semanas, seu filho tá desnutrido, mas mãe adolescente é assim mesmo, fica sem comer e nem pensa que pode matar o filho de fome". Disse que se ela fizesse o parto aquilo ia virar moda: "é o que todo mundo quer, chegar aqui passando mal e ganhar um parto de graça, mas eu não vou perder meu salário por isso". Me senti muito mal com aqueles comentários, mas não respondi nada...


Ela desconfiava de pré eclâmpsia, mas achou estranho que eu não estava inchada, pediu um exame de sangue e continuou esperando alguém entrar em contato com o diretor pra dar uma ordem sobre o que seria feito comigo. Uma enfermeira vinha aferir minha pressão e monitorar os batimentos da Paulinha de tempos em tempos. Mesmo sendo medicada a minha pressão continuava a subir e aquele mal estar só aumentava. Acho que nunca senti tanto medo quanto naquele dia, pensei que não ia mais sair de lá e que ia perder a minha pequena, ela estava muito agitada e eu ficava cada vez mais nervosa. A enfermeira aferiu a pressão outra vez e chamou a médica que já estava com o resultado do exame: "Vou ter que tirar a criança porque senão as duas vão morrer, ela já tá em sofrimento, não dá mais pra estabilizar a pressão e vamos ter que interromper a gestação por aqui".

Interromper a gestação? Tirar a criança?? Meu Deus, como eu detesto essa expressão, pra mim é algo muito frio, indiferente, horrível!! Não era aquilo que eu imaginava pra chegada da Paulinha, eu não conseguia nem repetir em pensamento aquilo que ouvi. A partir daquele momento, senti como se eu já não estivesse mais lá. Senti um medo, um desespero tão grande, uma angústia, eu nunca me senti tão só quanto naquele dia. É como se eu tivesse entrado no automático, não questionava, não recusava, apenas fazia o que me falavam. Por dentro eu tinha vontade de chorar, gritar, pensei até em fugir de lá, queria pedir uma explicação, um parto natural, pedir pra falar com o meu marido, mas não me senti à vontade pra falar com ninguém da equipe. Fui trocar de roupa, colocaram a sonda, a enfermeira aplicou o sulfato de magnésio e eu fui pro centro cirúrgico. Eu senti frio, medo, vergonha, me senti exposta e abandonada. Não fazia ideia de onde estava o meu marido, não sabia o que ia acontecer comigo e com a Paulinha, não sabia se veria a minha pequena, se sairia de lá com ela... Tudo foi tão rápido, exatamente como eu temia: eu sozinha num hospital, longe do meu marido, com uma médica ríspida que não me passava segurança, só aumentava o meu medo, exposta na frente de pessoas que nunca tinha visto. Aplicaram a anestesia, a enfermeira me ajudou a deitar e tudo começou. É estranho descrever o que eu senti. Acho que porque eu simplesmente não senti nada, nem física nem emocionalmente. Foi como se eu estivesse em outro lugar, bem longe dali. Levantaram aquele pano, amarraram os meus braços e tudo começou. Fiquei com medo que machucassem a Paulinha, nós estávamos sozinhas e eu nem podia ver o que ia acontecer. Os comentários da médica continuaram: "na próxima reunião com a direção eu vou reclamar, não tá certo, admitir alguém nesse estado e sobrar pra equipe médica? Culpa do pessoal da recepção, quero ver quem vai pagar essa conta, não sou paga pra fazer caridade pra grávida. Aposto que esse aqui vai ser PIG e vai pra incubadora".. Senti quando fizeram o corte, quando mexiam dentro de mim, é algo tão estranho, dá uma agonia... Ouvi e senti quando jorrou o líquido, continuaram mexendo e eu podia sentir que faziam uma pressão enorme, eu tive falta de ar, a mesa balançava muito, até que tiraram a Paulinha e eu pude vê-la de longe, tão pequena, ela nem chorou, só resmungou. Ouvi quando a médica disse: "PIG, eu nunca erro". Ela nasceu com 37 semanas e seis dias, com 2.386g e 45cm. Pedi pra vê-la de perto, a pediatra trouxe "pra dar um cheiro na mãe", eu quis tocá-la, mas os meus braços estavam amarrados e ela foi levada. Tive medo que fizessem algo ruim com ela. Enquanto me costuravam eu falei pra médica que não enxergava mais nada do lado esquerdo, ela disse que isso era comum e depois de alguns dias voltaria ao normal, quando a minha pressão ficasse estável. Fui deixada na sala de recuperação por um bom tempo, queria ver a minha pequena, acho que delirei naquela hora, tremia de frio, não parava de perguntar por ela, pelo meu marido, queria saber onde e com quem ela estava. Depois de um tempo fui levada pro quarto. A Paulinha demorou a subir, o protocolo da maternidade é manter o bebê no berçário por algumas horas - mesmo se ele estiver saudável precisa ficar longe da mãe em observação. Perguntei por ela e pelo meu marido várias vezes e só me diziam "fica quietinha e não fala nada por causa da cirurgia, sua filha tá segura no berçário". Ela foi trazida, segurei ela no colo, tentei colocá-la pra mamar, mas não consegui. Queriam levá-la de novo, mas pedi pra ela ficar lá comigo, deitada em mim. Meu marido veio nos ver, foi bem rápido, logo pediram pra ele sair. Ele foi embora e pouco tempo depois minha mãe veio ficar conosco. No dia seguinte, as duas mulheres que estavam no mesmo quarto que eu, receberam alta, o pediatra e a obstetra foram conversar com as duas, deram orientação sobre os testes que precisavam ser feitos no bebê, amamentação, cuidados durante a recuperação da cirurgia, entre outras coisas. Pedi pra falar com a obstetra, queria perguntar se a minha visão voltaria ao normal, ela disse que precisava ver outras pacientes e voltaria à tarde. O dia passou, ela não voltou. Eu ainda não tinha leite, não pude amamentar e deram complemento pra Paulinha. Fiquei frustrada, comecei a pensar que sem amamentar nunca teríamos um vínculo, que já tinha começado tudo errado... Nós receberíamos alta na terça à noite, depois de falar com a médica, mas pela manhã uma enfermeira disse que já podíamos ir embora, porque o quarto precisava ser desocupado. Durante o período que ficamos lá, nenhum obstetra foi nos ver. Não via a hora de sair de lá, mas fiquei chateada por não poder tirar as minhas dúvidas com ninguém e por ter certeza que não fui bem tratada por causa de toda aquela situação, por ter sido um atendimento de urgência, por causa da carência do plano... Durante as semanas pós parto fiquei na expectativa de acordar e ter a visão do lado esquerdo de volta, mas isso não aconteceu. Fui em três oftalmologistas e soube que por causa do aumento da pressão eu sofri uma atrofia nos nervos ópticos. Não tem reversão. Eu levei um tempo até me sentir próxima da minha filha. Tive depressão pós parto, sofri muito nos primeiros meses, sentia uma angústia enorme ao lembrar de tudo e só conseguia chorar, me culpar, ficava tentando me convencer de que tinha sido uma boa experiência, às vezes me forçava a parecer feliz e satisfeita na frente dos outros... Não entendia muito bem o que tinha acontecido e pra piorar ainda tive que ouvir pessoas discutindo o que eu tinha feito de errado pra minha pressão subir, que deveria ser por causa de algo que eu comi, estresse... Pessoas que não sabem nada sobre gravidez, pré eclâmpsia e síndrome hellp, sempre aparece alguém pra julgar e criticar...

Eu não me sentia boa o suficiente pra ser mãe, confesso que cheguei a pensar em desistir de mim mesma, vivia esgotada física e mentalmente. Por isso eu acabei me distanciando do meu marido, não tinha motivação pra fazer nada em casa nem de me cuidar, passava o dia sem me alimentar direito, emagreci muito, tinha medo de ficar em casa sozinha com ela e de sair sozinha, me isolava, fiquei paranóica em relação à Paulinha e procurava fazer tudo da melhor maneira possível, tentando provar pra mim mesma que podia ser uma boa mãe e me culpando quando algo saía errado (gases, cólica). Eu não aceitei ajuda de ninguém no período pós parto, não queria que ninguém além do meu marido chegasse perto dela e ficava nervosa quando alguém vinha nos visitar e queria tocar nela. Eu não falava o que sentia e ele ficava sem saber como me ajudar. Aquele dia era pra ter se tornado uma boa lembrança, mas deixou marcas ruins. Nós dois sofremos muito por ele ter ficado longe de nós duas, sem poder fazer nada, sem saber o que acontecia lá dentro. Ele esteve sempre presente durante a nossa gestação, nas consultas, exames e no dia mais importante ele foi excluído. Ele nem estava no hospital na hora da cirurgia. Ele estava tentando resolver tudo com o pessoal da recepção, pediram dinheiro, ele saiu, veio em casa buscar as nossas coisas, quando voltou foi avisado que o parto já tinha sido feito e que eu estava sendo costurada. Não consigo nem imaginar como ele se sentiu naquele dia, ele só diz que nunca se sentiu tão fraco, anulado e impotente. Quando nasce um bebê, nasce também uma mãe, uma família. E o acolhimento que a mãe e o bebê recebem nesse momento faz toda a diferença, deixa a família marcada pra sempre, pode ser motivo de alegria ou sofrimento. Por tudo que eu ouvi, vi e senti naquele dia eu não consigo me contentar só porque eu e a minha filha estamos vivas e no fim "deu tudo certo." Nenhuma família deveria ser desrespeitada desse jeito. Muitas mulheres sofrem, poucas falam. Tem vergonha de se sentir mal pelo dia do parto, que deveria ser um dia de alegria, orgulho. Tem medo de falar algo contra os médicos e hospitais. Decidem seguir em frente, deixando passar o abuso. Muitos profissionais de saúde estão acostumados a tratar todo mundo de qualquer jeito porque tem a certeza de que ninguém vai denunciá-los. Isso precisa mudar. Se você sofreu, não se cale. Busque ajuda e DENUNCIE. Fale sobre isso. Ajude a evitar que outras famílias sofram.


- Gabriela Repolho De Andrade Rosso: Presidente da Humaniza Coletivo Feminista. Uma associação cuja missão é apoiar, incentivar e difundir o respeito ao feminino, em todas as relações sociais. Bem como prevenir e erradicar a violência obstétrica através da promoção do direito da mulher mulher a uma vida livre de violência em todas as suas formas.


 

* Este relato faz parte da campanha #minhahistoriadeviolencia lançada pelo Instituto Mana em fevereiro/18. Quer participar também? Compartilhe o seu relato nas suas redes sociais com a hashtag #minhahistoriadeviolencia ou envie sua história para o nosso e-mail: oinstitutomana@gmail.com































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