Feminismo Nerd e a Mulher Maravilha
Olá, queridas manas! Como falamos há alguns dias na nossa página do Facebook, fomos assistir o melhor filme de super-herói de todos os tempos e achamos que seria legal comentarmos um pouco da obra e da história pra vocês. Preparem-se que lá vem textão altamente influenciado pelo maior hype do momento, o maravilhoso filme da maravilhosa Mulher Maravilha! Informamos que esse post tem spoiler atrás de spoiler.
Como qualquer fã de quadrinhos sabe, a Mulher Maravilha foi criada pela DC Comics (A mesma companhia que criou o Batman, Super Homem, Flash, Arlequina, entre outros heróis e vilões bem conhecidos) em 1941, bem no meio da Segunda Guerra Mundial.
A primeira versão do nascimento da Diana conta que ela foi esculpida do barro pela mãe, a rainha Hipólita, e ganhou seus poderes dos deuses que a abençoaram, como Atena, Afrodite, Hércules, dentre outros. Inicialmente, Diana vivia na mágica ilha de Themiscyra, onde não havia homens. Também é legal mencionarmos aqui que Diana e outras mulheres da ilha se relacionavam romanticamente com mulheres e que em várias HQs fica bem claro que Diana era bissexual. Um dos roteiristas dos quadrinhos até mesmo fez um comentário sobre esse tema no ano passado. É muito interessante a gente ver que, num mundo onde as pessoas bissexuais são apagadas até mesmo dentro de movimentos LGBTT, há essa representação.
Um dia, o avião do capitão americano Steve Trevor cai na ilha. Após saber da guerra ocorrendo fora da ilha mágica (a Primeira Guerra Mundial, no filme), Diana decide sair de Themiscyra para ajudar a humanidade. Os quadrinhos se desenvolvem a partir deste arco, sempre trazendo novas aventuras e vilões para Diana.
Diana foi criada para representar as mulheres que entravam no mercado de trabalho durante a Segunda Guerra Mundial e foi uma das primeiras heroínas dos quadrinhos! Durante a Segunda Guerra, de forma muito mais ampla do que na Primeira, as mulheres entraram de forma maciça no mercado de trabalho para suprir os postos deixados pelos homens que estavam na batalha e para preencher demandas surgidas com a eclosão da guerra, como no setor de armamentos. Quando os sobreviventes da Segunda Guerra retornaram para casa, uma parte da mão de obra feminina foi sumariamente demitida para dar lugar aos homens, enquanto outras puderam manter seus postos de trabalho, porém ganhando menos e em funções tidas como inferiores às dos homens. Houve um grande esforço da mídia e do governo, no pós Segunda Guerra, para incentivar as mulheres a voltarem ao lar e não desejarem mais trabalhar, mas a mudança já estava feita. O ingresso das mulheres no mercado de trabalho durante a Guerra foi um dos grandes motivadores aos movimentos feministas em prol de mais ofertas e melhores condições de trabalho para as mulheres. Vale ressaltar que, quando falamos de ‘mulheres’, estamos nos referindo somente às mulheres brancas de classe média e alta. Como bem lembrado pelas ativistas do feminismo negro, as mulheres negras e pobres sempre trabalharam.
Foi nesse contexto de início da emancipação feminina durante a Segunda Guerra que Diana foi criada pelo psicólogo e cartunista William Moulton Marston, que defendia a igualdade de gêneros e baseou a personagem nas duas mulheres com quem mantinha um relacionamento poliamoroso.
Inicialmente, a Mulher Maravilha não era tão revolucionária e em alguns exemplares da DC a personagem era secretária do grupo de super-heróis, além de usar uma respeitável saia na altura dos joelhos. Foi a partir de 1951 que Diana ganhou uma HQ só dela. Nos anos 60, os roteiristas dos quadrinhos decidiram fazer com que a Mulher Maravilha perdesse seus poderes e começasse a treinar artes marciais. Foi necessário que Gloria Steinem pressionasse a DC para que a Mulher-Maravilha voltasse a ser uma super-heroína, o que aconteceu em 73.
A partir de 1974, foram criadas séries de TV baseadas na história da Mulher Maravilha, porém a ideia somente agradou o público no final dos anos 70, estrelada pela Lynda Carter, cujas imagens são a cara da Mulher Maravilha até hoje (ou pelo menos até a Gal Gadot aparecer).
Nos anos 90, as vendas das HQs da Mulher Maravilha começaram a cair e a grande ideia da DC foi fazer com que Diana tivesse seios cada vez maiores e roupas minúsculas. Como sabemos, não é de roupa pequena que se aumenta a vendagem de quadrinhos, então em 2011, após uma peia nas vendas, a DC reformulou totalmente a história de Diana, passando a classificá-la como semideusa, filha de Hipólita e de Zeus, que havia sido escondida em Themiscyra para ser protegida. Foi nesse contexto que a DC começou a se articular para tirar o filme da Mulher Maravilha do papel.
Embora o filme tenha estreado este ano, a DC já vinha pensando em realizar uma película solo da Mulher Maravilha desde 1996. A primeira atriz cotada para o papel foi Sandra Bullock. Lucy Lawless, conhecida pelo seu papel em Xena (A Princesa Guerreira) também foi abordada pelos produtores do filme. Inicialmente, foram considerados diversos homens para a direção e somente em 2014 a produção decidiu colocar uma mulher como comandante da obra.
Patty Jenkins assumiu esse rojão em 2015. Nunca antes tendo dirigido um filme de super-herói (sua direção anterior foi no filme “Monster”, que garantiu a Charlize Theron o oscar de melhor atriz) e rodeada por treze produtores, sendo onze deles homens, eu diria que Jenkins se saiu muito bem. Muito melhor do que qualquer outro filme da DC, se as bilheterias servirem para comprovar algo. É possível ver a mão de Jenkins em diversos pontos do filme, como ao utilizar a câmera lenta para mostrar a coreografia dos movimentos ao invés de enfatizar a luta. É mais um vislumbre da arte do que da demonstração de força dos personagens. Ganhou milhões de fãs e deu uma assinatura única a um filme há tempos esperado.
E aí nós chegamos em um dos maiores debates feministas derivados do filme da Mulher Maravilha. Gal Gadot, uma israelense, ex-miss, ex-modelo e ex-militar do exército de Israel foi a escolhida para representar a heroína que mais preza pela justiça e pela paz PARA TODOS nas telas dos cinemas. A Gal, por outro lado, tem posicionamentos bem fortes em relação à política, à necessidade da guerra e à autodeterminação do povo judeu. Um de seus posts do Facebook diz: “Mando meu amor e orações para os cidadãos de Israel, especialmente para todos os meninos e meninas que estão arriscando sua vida protegendo meu país contra os terríveis atos do Hamas, que estão se escondendo como covardes atrás de mulheres e crianças… Vamos superar!!! Shabbat Shalom!”. (#nósestamoscertos #libertegazadohamas #pareoterror #coexista #amoIDF
A Isabelle Simões fez um post muito bom a respeito desse tema aqui e nós recomendamos a sua leitura. Por aqui, vamos transcrever apenas alguns dos questionamentos da autora: “Que definição de justiça, igualdade e feminismo é esta, em que Gal Gadot apoia e delimita quais são as mulheres e crianças que “merecem” morrer decorrentes de um militarismo fascista? Ela está adotando o mesmo discurso de culpabilização que tantos homens nos jogam na cara todos os dias para justificarem seus atos misóginos? Essas mulheres e crianças do oriente médio, que são os grupos mais vulneráveis em tempos de guerra, não merecem a justiça e a igualdade que a personagem da Mulher Maravilha tanto defende?”
Apesar de termos gostado muito do filme, não podemos fechar os olhos para o fato de que a mulher que personifica a Mulher Maravilha tenha falhas (gravíssimas) de posicionamento político.
E quanto ao padrão de beleza, podemos falar? Ainda não foi dessa vez que vimos uma heroína com pelos ou algum escurecimento nas axilas, uma controvérsia que as feministas nerds já vinham discutindo desde os primeiros trailers do filme. Gal Gadot é um exemplar perfeito do padrão, com braços finos, branca e magra.
A diversidade fica a cargo dos coadjuvantes e… vamos falar… que coadjuvantes! Levei um susto ao perceber que a tia de Diana, General Antíope, era a Robin Wright! Apesar de representar uma personagem tão diferente da Claire de “House of Cards”, se impõe no papel e é uma das mulheres mais inspiradoras e fortes que veremos em Mulher Maravilha.
Outras personagens que gostaria de mencionar são a Etta Candy, secretária do Steve Trevor, e a Doutora Maru. Fiquei o filme inteiro esperando uma piada gordofóbica em relação a Etta e fiquei feliz que ela não aconteceu. Apesar da personagem ter um espectro cômico na história, não houve piada baseada com o seu corpo e, em alguns momentos, foi ela que fez observações mordazes aos outros.
Quanto a Doutora Maru: Não poderia ter esperado uma ajudante de vilão melhor. A atriz Elena Anaya conseguiu personificar a loucura e genialidade de forma exemplar. 10/10
Também é interessante abordarmos o relacionamento entre a Diana e Steve Trevor, interpretado pelo Chris Pine (o Capitão Kirk nos últimos Star Trek no cinema). Apesar de ele se considerar um exemplar “acima da média” (entendeu a referência?), percebe que é uma figura secundária em relação a Diana, dando espaço para a sua liderança e sendo inspirado por ela. Seus amigos Sameer, Charlie e Chefe também percebem, lembremos, durante a Primeira Guerra Mundial, que é possível ser liderado por uma mulher. Aposto que eles viram essa palestra do Colin Stokes.
O Chefe é um personagem especial que eu também gostaria de abordar. Enquanto Diana percebe que não há um mal absoluto e que não há ninguém inteiramente isento na guerra (aprende, Gal!), o Chefe conta para ela que as pessoas que dizimaram a sua população são os estadunidenses, personificados por Steve Trevor. Apesar de ser um homem bom (pelo que sabemos), Steve somente está onde está pela sua população haver exterminado os índios nativos americanos. É muito difícil ver filmes populares americanos abordarem esses temas e cada menção a eles é uma vitória. As meninas do Collant Sem Decote também fizeram um post sobre um trecho do filme onde o Chefe aparece e vocês podem lê-lo aqui.
Todas as ações de Diana nos fazem compreender que ela, apesar de ser uma lutadora muito f***, é capaz de empatizar com os que sofrem e se preocupa de fato com a humanidade. Ela é naturalmente boa e segue seu coração. Diferente do Batman e do Super-Homem, que têm andado em momentos muito dark nos filmes, Diana representa a esperança de um mundo melhor.
Agora, vamos falar sobre dinheiro. Apesar da publicidade frugal do filme (lembram de quando saía um trailer novo de Esquadrão Suicida toda semana?), Mulher Maravilha se tornou a maior bilheteria de estreia de um filme dirigido por uma mulher nos Estados Unidos. Mundialmente, o filme fez 223 milhões e teve bilheteria superior até mesmo a Homem de Ferro, Guardiões da Galáxia, Capitão América, dentre outros filmes conhecidíssimos do mesmo gênero. Atualmente, é o longa de super-herói com maior aprovação no site Rotten Tomatoes, tendo 93% de aprovação do público e 94% de aprovação dos críticos.
Qualquer pessoa que viva no mundo real percebeu que, a partir dos anos 2000 o consumo geek aumentou de forma avassaladora. Apesar das mulheres também serem consumidoras neste mercado, as empresas produtoras de livros, quadrinhos, filmes, jogos e séries nesta área ainda têm medo em apostar no nosso consumo. Mulher Maravilha é um dos poucos filmes até mesmo a passar no Teste de Bechdel (aquele das duas mulheres que conversam entre si sobre algo que não seja um homem), sendo pioneiro em tratar as mulheres em mais do que curvas (é só comparar as imagens da Diana nos cartazes de Mulher Maravilha e da Natasha Romanova nos cartazes dos Vingadores, apesar da importância da Natasha nos filmes).
O público de Mulher Maravilha tem sido composto por 52% de mulheres. É um marco, tendo em vista que, em média, as mulheres compõem 40% ou menos do público de filmes de super-herói.
E aí, depois de todos esses dados, temos que nos perguntar: será que Mulher Maravilha pode ser visto como um filme feminista? Considerando que é um filme a respeito de uma mulher independente, poderosa, determinada e inteligente, dizemos que sim. Finalmente temos uma personagem nos cinemas com quem podemos nos espelhar e em quem queremos que nossas filhas, sobrinhas, netas, irmãs mais novas, enfim, todas as meninas se espelhem. E também que nossos filhos vejam como uma amiga, e não uma ameaça. Representatividade importa muito e Mulher Maravilha pode aumentar e muito a representatividade feminina no meio geek. Que a Diana, esta senhora que completou 75 anos em 2016, consiga ser a mudança para a visibilidade feminina nesse meio tão machista que é o da cultura nerd.
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